Por Guilherme Bitencourt
A confusão entre a moderna República de Israel, fundada em 1948, e a antiga Israel bíblica tem sido reiteradamente alimentada por discursos políticos, religiosos e ideológicos. No entanto, quando confrontamos essa associação com as evidências históricas, antropológicas, arqueológicas e textuais, torna-se claro que essa equiparação é insustentável. A Israel moderna é um produto do nacionalismo secular europeu do século XIX, enquanto a Israel bíblica foi uma entidade tribal, teocrática e religiosamente codificada, profundamente distinta em estrutura social, base étnica e fundamentos espirituais.
1. Um Estado secular moderno versus uma teocracia tribal
A Israel bíblica, como descrita no Antigo Testamento (Tanakh), era composta por doze tribos descendentes de Jacó (Israel), organizadas num sistema tribal, agrário, com forte centralidade no culto sacrificial do Templo e nas leis mosaicas. Era governada por juízes, profetas e posteriormente por reis ungidos por Deus (como Saul, Davi e Salomão). A lei era a Torá, e a obediência a Javé (YHWH) era a base da legitimidade do poder.
Em contraste, o Estado de Israel atual é uma república parlamentarista, fundada sobre ideais do sionismo, um movimento laico surgido na Europa oriental em resposta ao antissemitismo e às perseguições contra judeus. Seu criador, Theodor Herzl, era um jornalista austro-húngaro secular, que via na criação de um Estado judeu não um cumprimento profético, mas uma solução política moderna para um povo marginalizado.
A estrutura do Estado atual é fortemente militarizada, tecnológica, ocidentalizada, com leis inspiradas no direito europeu, e não na Halachá (lei judaica religiosa). A maior parte de seus líderes fundadores eram socialistas seculares (como Ben-Gurion), não sacerdotes nem profetas. A religião é, em grande parte, instrumentalizada, e não orientadora real do Estado.
2. Judaísmo moderno não é o judaísmo bíblico
O judaísmo atual é profundamente distinto do judaísmo praticado na época de Moisés ou de Jesus. A destruição do Segundo Templo de Jerusalém pelos romanos no ano 70 d.C. resultou no colapso das estruturas religiosas baseadas em sacrifícios. As principais seitas do período — saduceus, essênios, zelotes — desapareceram. O único grupo que sobreviveu intelectualmente foram os fariseus, cuja tradição deu origem ao judaísmo rabínico, centrado na Torá oral e nos comentários rabínicos compilados no Talmude.
Portanto, o judaísmo de hoje — quer seja ortodoxo, conservador, reformista ou laico-cultural — não é a continuidade litúrgica ou teológica do judaísmo bíblico. A religião deixou de ser sacrificial e se tornou livresca, interpretativa e adaptável, perdendo suas raízes tribais originais.
3. Origem dos judeus modernos: conversões, dispersão e mestiçagem
A maioria dos judeus israelenses atuais são asquenazitas, descendentes de comunidades que se estabeleceram no leste europeu na Idade Média. Diversos estudos genéticos (Elhaik, 2012; Ostrer, 2012) apontam que essas populações têm forte ancestralidade europeia, especialmente em linhagens maternas, indicando assimilação, casamentos mistos e conversões em massa. Um caso notório é o dos khazares, povo túrquico que, segundo fontes medievais e defendido por autores como Shlomo Sand (A Invenção do Povo Judeu), teria se convertido ao judaísmo entre os séculos VIII e X.
Portanto, muitos judeus atuais não são descendentes biológicos diretos dos antigos hebreus da Bíblia, mas de grupos europeus convertidos ou assimilados à fé judaica, com identidade construída mais sobre a religião e memória cultural do que sobre qualquer base étnico-biológica contínua.
4. Arqueologia e a ausência de continuidade
A arqueologia moderna, especialmente a partir do trabalho de estudiosos como Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman (The Bible Unearthed, 2001), mostra que muitas das narrativas do Antigo Testamento — como o êxodo do Egito, a conquista de Canaã ou os reinados unificados de Davi e Salomão — não possuem evidências materiais diretas ou claras. Em vez disso, sugerem que os israelitas se formaram como um povo dentro de Canaã, e não como invasores externos.
A ausência de continuidade material entre a população da antiga Canaã e os grupos que fundaram o Estado moderno de Israel, milênios depois, enfraquece a ideia de um “retorno” legítimo baseado em raízes históricas contínuas.
5. Uma identidade nacional inventada
A construção do nacionalismo israelense foi inspirada pelos moldes dos nacionalismos europeus modernos, que muitas vezes necessitaram “inventar” tradições, mitologias de origem e símbolos de coesão. Isso se aplica a Israel: símbolos bíblicos como a Estrela de Davi, a Menorá e o hebraico antigo foram reapropriados e reinventados para dar legitimidade simbólica a um projeto moderno e artificial.
Como mostra Eric Hobsbawm, em A Invenção das Tradições (1983), esse tipo de construção não é incomum, mas precisa ser reconhecido como tal, e não confundido com um retorno literal e legítimo a uma identidade ancestral contínua.
6. Um território habitado, não desabitado
Por fim, o argumento de “retorno à terra prometida” ignora o fato de que a Palestina, no fim do século XIX, não estava vazia, mas sim habitada majoritariamente por árabes palestinos — muçulmanos e cristãos — que ali viviam há séculos, muitos dos quais descendentes diretos das antigas populações semíticas locais. A chegada dos sionistas, apoiada por potências coloniais como a Grã-Bretanha, provocou conflitos, expulsões e despossessões — especialmente em 1948 e 1967 — criando a tragédia ainda vigente da Nakba (catástrofe palestina).
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