domingo, 15 de junho de 2025

Israel Moderna não é Israel Bíblica: Uma Separação Histórica, Antropológica e Espiritual Incontornável


Por Guilherme Bitencourt 

A confusão entre a moderna República de Israel, fundada em 1948, e a antiga Israel bíblica tem sido reiteradamente alimentada por discursos políticos, religiosos e ideológicos. No entanto, quando confrontamos essa associação com as evidências históricas, antropológicas, arqueológicas e textuais, torna-se claro que essa equiparação é insustentável. A Israel moderna é um produto do nacionalismo secular europeu do século XIX, enquanto a Israel bíblica foi uma entidade tribal, teocrática e religiosamente codificada, profundamente distinta em estrutura social, base étnica e fundamentos espirituais.

1. Um Estado secular moderno versus uma teocracia tribal

A Israel bíblica, como descrita no Antigo Testamento (Tanakh), era composta por doze tribos descendentes de Jacó (Israel), organizadas num sistema tribal, agrário, com forte centralidade no culto sacrificial do Templo e nas leis mosaicas. Era governada por juízes, profetas e posteriormente por reis ungidos por Deus (como Saul, Davi e Salomão). A lei era a Torá, e a obediência a Javé (YHWH) era a base da legitimidade do poder.

Em contraste, o Estado de Israel atual é uma república parlamentarista, fundada sobre ideais do sionismo, um movimento laico surgido na Europa oriental em resposta ao antissemitismo e às perseguições contra judeus. Seu criador, Theodor Herzl, era um jornalista austro-húngaro secular, que via na criação de um Estado judeu não um cumprimento profético, mas uma solução política moderna para um povo marginalizado.

A estrutura do Estado atual é fortemente militarizada, tecnológica, ocidentalizada, com leis inspiradas no direito europeu, e não na Halachá (lei judaica religiosa). A maior parte de seus líderes fundadores eram socialistas seculares (como Ben-Gurion), não sacerdotes nem profetas. A religião é, em grande parte, instrumentalizada, e não orientadora real do Estado.

2. Judaísmo moderno não é o judaísmo bíblico

O judaísmo atual é profundamente distinto do judaísmo praticado na época de Moisés ou de Jesus. A destruição do Segundo Templo de Jerusalém pelos romanos no ano 70 d.C. resultou no colapso das estruturas religiosas baseadas em sacrifícios. As principais seitas do período — saduceus, essênios, zelotes — desapareceram. O único grupo que sobreviveu intelectualmente foram os fariseus, cuja tradição deu origem ao judaísmo rabínico, centrado na Torá oral e nos comentários rabínicos compilados no Talmude.

Portanto, o judaísmo de hoje — quer seja ortodoxo, conservador, reformista ou laico-cultural — não é a continuidade litúrgica ou teológica do judaísmo bíblico. A religião deixou de ser sacrificial e se tornou livresca, interpretativa e adaptável, perdendo suas raízes tribais originais.

3. Origem dos judeus modernos: conversões, dispersão e mestiçagem

A maioria dos judeus israelenses atuais são asquenazitas, descendentes de comunidades que se estabeleceram no leste europeu na Idade Média. Diversos estudos genéticos (Elhaik, 2012; Ostrer, 2012) apontam que essas populações têm forte ancestralidade europeia, especialmente em linhagens maternas, indicando assimilação, casamentos mistos e conversões em massa. Um caso notório é o dos khazares, povo túrquico que, segundo fontes medievais e defendido por autores como Shlomo Sand (A Invenção do Povo Judeu), teria se convertido ao judaísmo entre os séculos VIII e X.

Portanto, muitos judeus atuais não são descendentes biológicos diretos dos antigos hebreus da Bíblia, mas de grupos europeus convertidos ou assimilados à fé judaica, com identidade construída mais sobre a religião e memória cultural do que sobre qualquer base étnico-biológica contínua.

4. Arqueologia e a ausência de continuidade

A arqueologia moderna, especialmente a partir do trabalho de estudiosos como Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman (The Bible Unearthed, 2001), mostra que muitas das narrativas do Antigo Testamento — como o êxodo do Egito, a conquista de Canaã ou os reinados unificados de Davi e Salomão — não possuem evidências materiais diretas ou claras. Em vez disso, sugerem que os israelitas se formaram como um povo dentro de Canaã, e não como invasores externos.

A ausência de continuidade material entre a população da antiga Canaã e os grupos que fundaram o Estado moderno de Israel, milênios depois, enfraquece a ideia de um “retorno” legítimo baseado em raízes históricas contínuas.

5. Uma identidade nacional inventada

A construção do nacionalismo israelense foi inspirada pelos moldes dos nacionalismos europeus modernos, que muitas vezes necessitaram “inventar” tradições, mitologias de origem e símbolos de coesão. Isso se aplica a Israel: símbolos bíblicos como a Estrela de Davi, a Menorá e o hebraico antigo foram reapropriados e reinventados para dar legitimidade simbólica a um projeto moderno e artificial.

Como mostra Eric Hobsbawm, em A Invenção das Tradições (1983), esse tipo de construção não é incomum, mas precisa ser reconhecido como tal, e não confundido com um retorno literal e legítimo a uma identidade ancestral contínua.

6. Um território habitado, não desabitado

Por fim, o argumento de “retorno à terra prometida” ignora o fato de que a Palestina, no fim do século XIX, não estava vazia, mas sim habitada majoritariamente por árabes palestinos — muçulmanos e cristãos — que ali viviam há séculos, muitos dos quais descendentes diretos das antigas populações semíticas locais. A chegada dos sionistas, apoiada por potências coloniais como a Grã-Bretanha, provocou conflitos, expulsões e despossessões — especialmente em 1948 e 1967 — criando a tragédia ainda vigente da Nakba (catástrofe palestina).

7. A linguagem como reconstrução e não continuidade

Outro aspecto revelador da artificialidade do Estado moderno de Israel enquanto “herdeiro” da Israel bíblica está na própria língua hebraica. O hebraico bíblico foi uma língua morta por quase dois milênios, preservada apenas nos textos religiosos e litúrgicos. Durante séculos, os judeus da diáspora falavam línguas vernaculares locais como iídiche, ladino, árabe judaico ou judeu-persa.

A ressurreição do hebraico como língua viva no século XIX, promovida por figuras como Eliezer Ben-Yehuda, não foi um simples retorno a uma tradição, mas um processo radical de engenharia linguística. O hebraico moderno é fortemente influenciado por línguas europeias, com estrutura e vocabulário adaptados para a modernidade. Ele se afasta profundamente do hebraico da Torá, o qual pouquíssimos falavam fluentemente até então.

Portanto, até mesmo a linguagem do Estado moderno é uma recriação cultural deliberada, parte do esforço sionista de criar coesão nacional, e não uma herança orgânica da Israel antiga.

 8. Identidade baseada em etnicidade ou fé?

A Bíblia Hebraica define quem pertença ao povo de Israel com base em uma linhagem patriarcal e tribal, descendente de Abraão, Isaque e Jacó. Essa identidade era religiosa e étnica ao mesmo tempo, mas sempre localizada numa estrutura genealógica.

O Estado de Israel atual, porém, baseia sua Lei do Retorno (de 1950) em um critério híbrido: qualquer pessoa com um avô judeu pode imigrar e obter cidadania, mesmo que não pratique o judaísmo. Isso criou paradoxos, como a entrada de milhares de judeus seculares ou mesmo ateus, enquanto palestinos que foram expulsos de suas terras ancestrais continuam barrados pelo mesmo Estado.

Esse critério evidencia que o moderno conceito de “judeu” está mais próximo de uma identidade nacionalista moderna do que de uma linhagem tribal bíblica. A substituição de uma espiritualidade orgânica por critérios burocráticos revela mais uma ruptura do que uma continuidade.

 9. As implicações políticas dessa falsa equivalência

A perpetuação da ideia de que o moderno Estado de Israel é a continuação da Israel bíblica tem implicações políticas graves e perigosas. Ela tem sido usada como base para justificar a colonização de territórios ocupados, a opressão do povo palestino, e a exclusão de qualquer narrativa alternativa ao sionismo. Políticos e líderes religiosos invocam profecias bíblicas para sancionar a construção de assentamentos ilegais e a destruição de casas palestinas, como se estivessem cumprindo um plano divino.

Entretanto, como demonstrado, a Israel moderna é um produto da modernidade política e não da providência profética. Reivindicar autoridade moral com base em textos religiosos milenares, descontextualizados e reinterpretados por interesses estatais, é não apenas desonesto — é perigoso.

A real Israel bíblica, se existiu historicamente como nação unificada e teocrática (o que também é debatido), cessou de existir há mais de dois milênios, e seu legado é espiritual, não político. A tentativa de transformá-lo em justificativa para um projeto de engenharia geopolítica e etnocêntrica compromete a justiça, a paz e a coexistência que poderiam florescer naquela terra sagrada para três grandes tradições religiosas.

Conclusão

Confundir a moderna Israel com a Israel bíblica é um erro histórico, político, antropológico e espiritual. Os dados arqueológicos demonstram descontinuidades profundas; a identidade judaica atual é múltipla, globalizada e muitas vezes construída; o sionismo é uma invenção recente, ocidental e laica; e o Estado de Israel opera com lógicas modernas de poder, fronteira, exército e direito internacional — absolutamente distintas da teocracia tribal que existiu na Antiguidade.

Ao invés de mitificar essa continuidade, o mundo precisa reconhecê-la como uma construção artificial com implicações graves para a vida de milhões de pessoas. Só com a superação dessas narrativas míticas e com o reconhecimento das múltiplas realidades históricas será possível imaginar uma paz justa entre os povos da Palestina histórica.


 Bibliografia (selecionada)

Shlomo Sand. A Invenção do Povo Judeu. São Paulo: Benvirá, 2011.
  — Obra fundamental que questiona a narrativa de continuidade étnica entre os hebreus bíblicos e os judeus modernos.

Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman. The Bible Unearthed: Archaeology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of its Sacred Texts. New York: Free Press, 2001.
  — Base arqueológica crítica que mostra a falta de evidências para muitas narrativas bíblicas.

Eric Hobsbawm e Terence Ranger (orgs.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
  — Análise sobre como identidades nacionais modernas são construídas com mitos de origem.

Ariel Toaff. Pasque di sangue: Ebrei d’Europa e omicidi rituali. Bologna: Il Mulino, 2007.
  — Discussões históricas sobre a diversidade dos judeus europeus e sua relação com a construção da identidade israelense.

Gilad Atzmon. The Wandering Who? A Study of Jewish Identity Politics. Winchester: Zero Books, 2011.
  — Estudo crítico da identidade judaica moderna e do papel do sionismo.

Eran Elhaik. "The Missing Link of Jewish European Ancestry: Contrasting the Rhineland and the Khazarian Hypotheses". Genome Biology and Evolution, 2012.
  — Estudo genético que questiona a narrativa de continuidade étnica direta entre judeus modernos e hebreus antigos.

Bíblia Hebraica (Tanakh) – Versões acadêmicas como a Jewish Study Bible (Oxford University Press) ajudam a contextualizar textos antigos à luz da crítica textual e histórica.

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