quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Elias e o Carrossel de Fogo: Uma Revisão Crítica, Simbólica e Filosófica






Por Guilherme Bitencourt 

A passagem bíblica de Elias sendo levado aos céus em um "carro de fogo" (2 Reis 2:11) é, sem dúvida, uma das mais simbólicas e ricas em termos teológicos e filosóficos. Contudo, ao examinarmos o evento com base em fontes históricas, arqueológicas e filosóficas, encontramos desafios que questionam uma interpretação literal. Essa análise busca explorar tanto a historicidade quanto o simbolismo dessa narrativa, traçando paralelos com fontes hebraicas tradicionais e uma ressignificação contemporânea, inspirada em diversas correntes filosóficas.

O primeiro ponto a ser abordado refere-se à falta de evidências arqueológicas que confirmem a existência de um evento como o descrito em 2 Reis 2:11. O que sabemos da arqueologia do período não sustenta a presença de qualquer manifestação física ou testemunho concreto de tal evento, muito menos de um "carro de fogo" que transporta Elias ao céu. Isso levanta questões importantes sobre a possibilidade de a passagem ser mais alegórica do que factual.

Além disso, teólogos renomados, como Rudolf Bultmann, um dos principais expoentes da demitologização bíblica, sugerem que muitas das narrativas bíblicas, especialmente aquelas que envolvem eventos sobrenaturais, foram construídas em torno de símbolos e metáforas. Bultmann argumenta que é necessário decodificar o significado profundo dessas passagens, sem nos atermos à superfície literal. No caso de Elias, o "carro de fogo" pode ser interpretado como uma metáfora para o êxtase espiritual, a transcendência ou o despojamento da condição humana para atingir um estado de proximidade com o divino.

Outro ponto de vista relevante é o oferecido por teólogos da tradição hebraica. Maimônides, no "Guia dos Perplexos", já sugeria que muitas das visões proféticas relatadas no Antigo Testamento eram fruto de experiências místicas ou espirituais, e não de eventos concretos no mundo material. A ascensão de Elias, nesse sentido, pode ser entendida como uma elevação espiritual, um fenômeno interior, em vez de um transporte físico para o céu.

Filósofos como Paul Ricoeur também oferecem uma perspectiva útil. Ricoeur, ao falar sobre o "código simbólico" nas narrativas religiosas, indica que devemos procurar o sentido profundo por trás dos eventos sobrenaturais. No caso de Elias, o "carro de fogo" poderia simbolizar o fogo da purificação espiritual, enquanto a ascensão ao céu seria a imagem de um ser humano que, tendo atingido um elevado nível moral e espiritual, está preparado para a união com o divino.

Entretanto, quando confrontamos a visão de que Elias teria sido privilegiado por sua "integridade e lealdade" a Deus, conforme sugere o comentário, encontramos uma interpretação problemática do conceito de "privilégio divino" nas Escrituras. Mesmo figuras de grande retidão como Moisés, que também foi íntimo de Deus, experimentaram a morte física (Deuteronômio 34:5). O relato de Elias não pode ser visto como uma exceção à regra universal da mortalidade, mas sim como uma narrativa especial de transcendência espiritual.

De forma simbólica, os "céus" na tradição hebraica e filosófica não são tanto um lugar físico, mas uma condição de proximidade com Deus. O Zohar, um dos principais textos da cabala judaica, explica que o céu representa um estado de consciência elevada, onde a alma encontra seu verdadeiro propósito e identidade. Nesse contexto, Elias "ascender aos céus" não seria entendido literalmente como entrar em um espaço celestial físico, mas sim alcançar um estado de perfeição espiritual.

Além disso, quando reavaliamos a expressão "carro de fogo", o próprio conceito de fogo, tanto na Bíblia quanto em outras tradições espirituais, é associado à purificação e transformação. Assim, ao invés de imaginar Elias sendo fisicamente transportado por um carro flamejante, pode-se entender que ele passou por um processo de purificação intensa que o preparou para o encontro definitivo com Deus. O "fogo" aqui simboliza a transformação espiritual necessária para transcender a condição humana.

Por fim, vale a pena observar que a noção de que os "céus são misteriosos e maravilhosos" não deve ser vista como uma forma de distanciamento da vida terrena. Pelo contrário, a verdadeira espiritualidade, conforme ensinam filósofos como Martin Buber, consiste em encontrar Deus nas relações cotidianas e nos gestos simples da existência. A transcendência, assim, não deve ser uma fuga da vida terrena, mas um encontro com o sagrado dentro do próprio mundo, no “entre” dos seres.

Assim, longe de reforçar uma divisão entre o celestial e o terreno, a narrativa de Elias nos convida a integrar essas duas dimensões, reconhecendo que o céu, no sentido espiritual, pode ser alcançado aqui e agora, em nossa própria caminhada de transformação.

Bibliografia:

- Bultmann, Rudolf. Jesus Christ and Mythology. Harper & Row, 1958.
- Maimônides. The Guide for the Perplexed. Translated by M. Friedlander, Dover Publications, 1956.
- Ricoeur, Paul. The Symbolism of Evil. Beacon Press, 1967.
- Zohar. The Book of Splendor. Translated by Gershom Scholem, Schocken Books, 1963.
- Buber, Martin. I and Thou. Scribner, 1958.



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