Sionistas com pertences saqueados de residências palestinas |
Por Guilherme Bitencourt
A narrativa oficial do Estado de Israel sobre sua fundação em 1948 sempre oscilou entre o heroísmo da sobrevivência e o triunfo de um povo retornando à sua terra ancestral. No entanto, uma série de estudos aprofundados por historiadores israelenses tem desconstruído essa visão idílica, revelando um passado embebido de violência, expropriação e engenharia demográfica. Um desses estudos mais contundentes é o do historiador israelense Adam Raz, autor do livro "Looting of Arab Property in the War of Independence", publicado em hebraico em 2021 e resenhado por Ofer Aderet no Haaretz. A obra é descrita como “o primeiro estudo abrangente sobre a pilhagem sistemática de propriedades árabes por civis e soldados judeus durante a guerra de 1948”.
Com base em documentos recém-abertos do arquivo do Estado de Israel, Raz demonstra que os saques não foram episódios isolados, cometidos por marginais ou oportunistas, mas sim um fenômeno disseminado, muitas vezes incentivado — ou ao menos tolerado — pelas autoridades do novo Estado. Em 1948, cerca de 700 mil palestinos foram expulsos ou fugiram de suas casas, deixando para trás tudo o que possuíam. Essa vaga de exílio, conhecida como Nakba (catástrofe, em árabe), foi acompanhada de pilhagem em larga escala: utensílios, móveis, colheitas, veículos, joias e até objetos religiosos foram levados.
A gravidade do fenômeno é tamanha que David Ben-Gurion, o primeiro-ministro de Israel e figura central da fundação do Estado, chegou a declarar: “A maioria dos judeus são ladrões”. A frase, que poderia ser facilmente descartada como difamatória se vinda de um opositor antissemita, foi proferida por aquele considerado o “pai da nação”, dois meses após a fundação de Israel.
Gideon Levy, jornalista veterano do Haaretz, sublinha que essa frase não é apenas uma crítica moral, mas uma constatação política e histórica. Para ele, o saque generalizado não foi um mero reflexo da ganância humana, mas uma ferramenta estratégica no projeto sionista de limpeza étnica. “Antes mesmo da destruição de mais de 400 aldeias árabes pela força, o saque veio para esvaziá-las psicologicamente”, escreve Levy. “Era preciso garantir que os palestinos jamais sonhassem em retornar.”
A documentação reunida por Raz mostra que soldados e civis judeus — homens e mulheres — invadiam casas abandonadas, carregavam móveis em caminhões do Exército, trocavam joias em mercados negros e distribuíam bens saqueados entre familiares. Muitos desses atos foram denunciados à época, mas as investigações foram arquivadas ou resultaram em sentenças simbólicas. Como diz Levy: “Houve julgamentos, mas ridículos. O Estado fechou os olhos. E ao fechar os olhos, estimulou a barbárie.”
Essa “barbárie útil”, como descreve o historiador Ilan Pappé, autor de "The Ethnic Cleansing of Palestine" (2006), compunha uma estratégia de dominação territorial e apagamento da presença árabe. Pappé mostra, com base em arquivos militares e documentos do Haganá, que a expulsão dos palestinos e a destruição de suas vilas não foram consequências do caos da guerra, mas uma política premeditada: o Plano Dalet, elaborado em março de 1948, previa a conquista de aldeias árabes e a expulsão de seus habitantes, mesmo que não representassem ameaça militar.
Para Pappé, Israel foi fundado sobre os escombros de outra nação — e para que a nova realidade se consolidasse, era preciso apagar toda lembrança da anterior. A pilhagem, nesse contexto, não era apenas roubo: era destruição simbólica. Era um meio de assegurar que os refugiados não tivessem onde voltar, nem por que voltar. Era a sedimentação da tragédia palestina, transformando lares em armazéns do Exército, mesquitas em celeiros e escolas em depósitos.
O silêncio oficial sobre esses crimes permaneceu por décadas. Só recentemente, com a abertura parcial dos arquivos de 1948 e o trabalho corajoso de acadêmicos israelenses dissidentes, como Benny Morris, Tom Segev, Shlomo Sand e o já citado Ilan Pappé, começou-se a montar o quebra-cabeça da Nakba. Para Morris, embora ele ainda se identifique com a visão sionista, é inegável que houve uma limpeza étnica — e que ela foi necessária para a criação de Israel como Estado judeu. Essa honestidade brutal, embora controversa, abre caminhos para um diálogo mais sincero entre israelenses e palestinos.
No entanto, como lembra Gideon Levy em sua análise final, não há reconciliação possível sem verdade. E essa verdade é dolorosa. “Os palestinos que hoje vivem em campos de refugiados, ou nas periferias miseráveis de Israel, carregam consigo as memórias de aldeias desaparecidas — de casas que já não existem, mas que vivem nas palavras dos avós, em fotos amareladas, em chaves sem portas.”
Levy conclui com uma provocação ética: “Basta perguntar aos judeus o que sentem ao ver qualquer lembrança ou propriedade judaica profanada na Europa. A dor é legítima. E por que seria diferente com os árabes? Eles também choram pelo que lhes foi roubado. Eles também sangram por aquilo que não puderam enterrar.”
A história exige que se diga o indizível, que se revelem os escombros sobre os quais se ergueram as bandeiras. E se há esperança de um futuro comum, ela começa na admissão honesta do passado.
Referências e Bibliografia:
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Raz, Adam. Looting of Arab Property in the War of Independence. Carmel Publishing, 2021.
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Pappé, Ilan. The Ethnic Cleansing of Palestine. Oneworld Publications, 2006.
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Morris, Benny. The Birth of the Palestinian Refugee Problem Revisited. Cambridge University Press, 2004.
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Sand, Shlomo. The Invention of the Jewish People. Verso Books, 2009.
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Levy, Gideon. “Most Jews Are Thieves,” Haaretz, 2021.
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Aderet, Ofer. “Soldiers and Civilians Looted Arab Homes in 1948. The State Looked Away.” Haaretz, 2021.
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Segev, Tom. 1949: The First Israelis. Owl Books, 1998.
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Kanaana, Sharif. Still Waiting for the Return: Refugees of Palestine in 1948. Palestinian Academic Society for the Study of International Affairs (PASSIA), 1992.
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