domingo, 15 de junho de 2025

O Saque Silenciado: A Limpeza Étnica da Palestina Segundo Historiadores Israelenses

Sionistas com pertences saqueados de residências palestinas


Por Guilherme Bitencourt 

A narrativa oficial do Estado de Israel sobre sua fundação em 1948 sempre oscilou entre o heroísmo da sobrevivência e o triunfo de um povo retornando à sua terra ancestral. No entanto, uma série de estudos aprofundados por historiadores israelenses tem desconstruído essa visão idílica, revelando um passado embebido de violência, expropriação e engenharia demográfica. Um desses estudos mais contundentes é o do historiador israelense Adam Raz, autor do livro "Looting of Arab Property in the War of Independence", publicado em hebraico em 2021 e resenhado por Ofer Aderet no Haaretz. A obra é descrita como “o primeiro estudo abrangente sobre a pilhagem sistemática de propriedades árabes por civis e soldados judeus durante a guerra de 1948”.

Com base em documentos recém-abertos do arquivo do Estado de Israel, Raz demonstra que os saques não foram episódios isolados, cometidos por marginais ou oportunistas, mas sim um fenômeno disseminado, muitas vezes incentivado — ou ao menos tolerado — pelas autoridades do novo Estado. Em 1948, cerca de 700 mil palestinos foram expulsos ou fugiram de suas casas, deixando para trás tudo o que possuíam. Essa vaga de exílio, conhecida como Nakba (catástrofe, em árabe), foi acompanhada de pilhagem em larga escala: utensílios, móveis, colheitas, veículos, joias e até objetos religiosos foram levados.

A gravidade do fenômeno é tamanha que David Ben-Gurion, o primeiro-ministro de Israel e figura central da fundação do Estado, chegou a declarar: “A maioria dos judeus são ladrões”. A frase, que poderia ser facilmente descartada como difamatória se vinda de um opositor antissemita, foi proferida por aquele considerado o “pai da nação”, dois meses após a fundação de Israel.

Gideon Levy, jornalista veterano do Haaretz, sublinha que essa frase não é apenas uma crítica moral, mas uma constatação política e histórica. Para ele, o saque generalizado não foi um mero reflexo da ganância humana, mas uma ferramenta estratégica no projeto sionista de limpeza étnica. “Antes mesmo da destruição de mais de 400 aldeias árabes pela força, o saque veio para esvaziá-las psicologicamente”, escreve Levy. “Era preciso garantir que os palestinos jamais sonhassem em retornar.”

A documentação reunida por Raz mostra que soldados e civis judeus — homens e mulheres — invadiam casas abandonadas, carregavam móveis em caminhões do Exército, trocavam joias em mercados negros e distribuíam bens saqueados entre familiares. Muitos desses atos foram denunciados à época, mas as investigações foram arquivadas ou resultaram em sentenças simbólicas. Como diz Levy: “Houve julgamentos, mas ridículos. O Estado fechou os olhos. E ao fechar os olhos, estimulou a barbárie.”

Essa “barbárie útil”, como descreve o historiador Ilan Pappé, autor de "The Ethnic Cleansing of Palestine" (2006), compunha uma estratégia de dominação territorial e apagamento da presença árabe. Pappé mostra, com base em arquivos militares e documentos do Haganá, que a expulsão dos palestinos e a destruição de suas vilas não foram consequências do caos da guerra, mas uma política premeditada: o Plano Dalet, elaborado em março de 1948, previa a conquista de aldeias árabes e a expulsão de seus habitantes, mesmo que não representassem ameaça militar.

Para Pappé, Israel foi fundado sobre os escombros de outra nação — e para que a nova realidade se consolidasse, era preciso apagar toda lembrança da anterior. A pilhagem, nesse contexto, não era apenas roubo: era destruição simbólica. Era um meio de assegurar que os refugiados não tivessem onde voltar, nem por que voltar. Era a sedimentação da tragédia palestina, transformando lares em armazéns do Exército, mesquitas em celeiros e escolas em depósitos.

O silêncio oficial sobre esses crimes permaneceu por décadas. Só recentemente, com a abertura parcial dos arquivos de 1948 e o trabalho corajoso de acadêmicos israelenses dissidentes, como Benny Morris, Tom Segev, Shlomo Sand e o já citado Ilan Pappé, começou-se a montar o quebra-cabeça da Nakba. Para Morris, embora ele ainda se identifique com a visão sionista, é inegável que houve uma limpeza étnica — e que ela foi necessária para a criação de Israel como Estado judeu. Essa honestidade brutal, embora controversa, abre caminhos para um diálogo mais sincero entre israelenses e palestinos.

No entanto, como lembra Gideon Levy em sua análise final, não há reconciliação possível sem verdade. E essa verdade é dolorosa. “Os palestinos que hoje vivem em campos de refugiados, ou nas periferias miseráveis de Israel, carregam consigo as memórias de aldeias desaparecidas — de casas que já não existem, mas que vivem nas palavras dos avós, em fotos amareladas, em chaves sem portas.”

Levy conclui com uma provocação ética: “Basta perguntar aos judeus o que sentem ao ver qualquer lembrança ou propriedade judaica profanada na Europa. A dor é legítima. E por que seria diferente com os árabes? Eles também choram pelo que lhes foi roubado. Eles também sangram por aquilo que não puderam enterrar.”

A história exige que se diga o indizível, que se revelem os escombros sobre os quais se ergueram as bandeiras. E se há esperança de um futuro comum, ela começa na admissão honesta do passado.


Referências e Bibliografia:


  • Raz, Adam. Looting of Arab Property in the War of Independence. Carmel Publishing, 2021.

  • Pappé, Ilan. The Ethnic Cleansing of Palestine. Oneworld Publications, 2006.

  • Morris, Benny. The Birth of the Palestinian Refugee Problem Revisited. Cambridge University Press, 2004.

  • Sand, Shlomo. The Invention of the Jewish People. Verso Books, 2009.

  • Levy, Gideon. “Most Jews Are Thieves,” Haaretz, 2021.

  • Aderet, Ofer. “Soldiers and Civilians Looted Arab Homes in 1948. The State Looked Away.” Haaretz, 2021.

  • Segev, Tom. 1949: The First Israelis. Owl Books, 1998.

  • Kanaana, Sharif. Still Waiting for the Return: Refugees of Palestine in 1948. Palestinian Academic Society for the Study of International Affairs (PASSIA), 1992.

Israel Moderna não é Israel Bíblica: Uma Separação Histórica, Antropológica e Espiritual Incontornável


Por Guilherme Bitencourt 

A confusão entre a moderna República de Israel, fundada em 1948, e a antiga Israel bíblica tem sido reiteradamente alimentada por discursos políticos, religiosos e ideológicos. No entanto, quando confrontamos essa associação com as evidências históricas, antropológicas, arqueológicas e textuais, torna-se claro que essa equiparação é insustentável. A Israel moderna é um produto do nacionalismo secular europeu do século XIX, enquanto a Israel bíblica foi uma entidade tribal, teocrática e religiosamente codificada, profundamente distinta em estrutura social, base étnica e fundamentos espirituais.

1. Um Estado secular moderno versus uma teocracia tribal

A Israel bíblica, como descrita no Antigo Testamento (Tanakh), era composta por doze tribos descendentes de Jacó (Israel), organizadas num sistema tribal, agrário, com forte centralidade no culto sacrificial do Templo e nas leis mosaicas. Era governada por juízes, profetas e posteriormente por reis ungidos por Deus (como Saul, Davi e Salomão). A lei era a Torá, e a obediência a Javé (YHWH) era a base da legitimidade do poder.

Em contraste, o Estado de Israel atual é uma república parlamentarista, fundada sobre ideais do sionismo, um movimento laico surgido na Europa oriental em resposta ao antissemitismo e às perseguições contra judeus. Seu criador, Theodor Herzl, era um jornalista austro-húngaro secular, que via na criação de um Estado judeu não um cumprimento profético, mas uma solução política moderna para um povo marginalizado.

A estrutura do Estado atual é fortemente militarizada, tecnológica, ocidentalizada, com leis inspiradas no direito europeu, e não na Halachá (lei judaica religiosa). A maior parte de seus líderes fundadores eram socialistas seculares (como Ben-Gurion), não sacerdotes nem profetas. A religião é, em grande parte, instrumentalizada, e não orientadora real do Estado.

2. Judaísmo moderno não é o judaísmo bíblico

O judaísmo atual é profundamente distinto do judaísmo praticado na época de Moisés ou de Jesus. A destruição do Segundo Templo de Jerusalém pelos romanos no ano 70 d.C. resultou no colapso das estruturas religiosas baseadas em sacrifícios. As principais seitas do período — saduceus, essênios, zelotes — desapareceram. O único grupo que sobreviveu intelectualmente foram os fariseus, cuja tradição deu origem ao judaísmo rabínico, centrado na Torá oral e nos comentários rabínicos compilados no Talmude.

Portanto, o judaísmo de hoje — quer seja ortodoxo, conservador, reformista ou laico-cultural — não é a continuidade litúrgica ou teológica do judaísmo bíblico. A religião deixou de ser sacrificial e se tornou livresca, interpretativa e adaptável, perdendo suas raízes tribais originais.

3. Origem dos judeus modernos: conversões, dispersão e mestiçagem

A maioria dos judeus israelenses atuais são asquenazitas, descendentes de comunidades que se estabeleceram no leste europeu na Idade Média. Diversos estudos genéticos (Elhaik, 2012; Ostrer, 2012) apontam que essas populações têm forte ancestralidade europeia, especialmente em linhagens maternas, indicando assimilação, casamentos mistos e conversões em massa. Um caso notório é o dos khazares, povo túrquico que, segundo fontes medievais e defendido por autores como Shlomo Sand (A Invenção do Povo Judeu), teria se convertido ao judaísmo entre os séculos VIII e X.

Portanto, muitos judeus atuais não são descendentes biológicos diretos dos antigos hebreus da Bíblia, mas de grupos europeus convertidos ou assimilados à fé judaica, com identidade construída mais sobre a religião e memória cultural do que sobre qualquer base étnico-biológica contínua.

4. Arqueologia e a ausência de continuidade

A arqueologia moderna, especialmente a partir do trabalho de estudiosos como Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman (The Bible Unearthed, 2001), mostra que muitas das narrativas do Antigo Testamento — como o êxodo do Egito, a conquista de Canaã ou os reinados unificados de Davi e Salomão — não possuem evidências materiais diretas ou claras. Em vez disso, sugerem que os israelitas se formaram como um povo dentro de Canaã, e não como invasores externos.

A ausência de continuidade material entre a população da antiga Canaã e os grupos que fundaram o Estado moderno de Israel, milênios depois, enfraquece a ideia de um “retorno” legítimo baseado em raízes históricas contínuas.

5. Uma identidade nacional inventada

A construção do nacionalismo israelense foi inspirada pelos moldes dos nacionalismos europeus modernos, que muitas vezes necessitaram “inventar” tradições, mitologias de origem e símbolos de coesão. Isso se aplica a Israel: símbolos bíblicos como a Estrela de Davi, a Menorá e o hebraico antigo foram reapropriados e reinventados para dar legitimidade simbólica a um projeto moderno e artificial.

Como mostra Eric Hobsbawm, em A Invenção das Tradições (1983), esse tipo de construção não é incomum, mas precisa ser reconhecido como tal, e não confundido com um retorno literal e legítimo a uma identidade ancestral contínua.

6. Um território habitado, não desabitado

Por fim, o argumento de “retorno à terra prometida” ignora o fato de que a Palestina, no fim do século XIX, não estava vazia, mas sim habitada majoritariamente por árabes palestinos — muçulmanos e cristãos — que ali viviam há séculos, muitos dos quais descendentes diretos das antigas populações semíticas locais. A chegada dos sionistas, apoiada por potências coloniais como a Grã-Bretanha, provocou conflitos, expulsões e despossessões — especialmente em 1948 e 1967 — criando a tragédia ainda vigente da Nakba (catástrofe palestina).

7. A linguagem como reconstrução e não continuidade

Outro aspecto revelador da artificialidade do Estado moderno de Israel enquanto “herdeiro” da Israel bíblica está na própria língua hebraica. O hebraico bíblico foi uma língua morta por quase dois milênios, preservada apenas nos textos religiosos e litúrgicos. Durante séculos, os judeus da diáspora falavam línguas vernaculares locais como iídiche, ladino, árabe judaico ou judeu-persa.

A ressurreição do hebraico como língua viva no século XIX, promovida por figuras como Eliezer Ben-Yehuda, não foi um simples retorno a uma tradição, mas um processo radical de engenharia linguística. O hebraico moderno é fortemente influenciado por línguas europeias, com estrutura e vocabulário adaptados para a modernidade. Ele se afasta profundamente do hebraico da Torá, o qual pouquíssimos falavam fluentemente até então.

Portanto, até mesmo a linguagem do Estado moderno é uma recriação cultural deliberada, parte do esforço sionista de criar coesão nacional, e não uma herança orgânica da Israel antiga.

 8. Identidade baseada em etnicidade ou fé?

A Bíblia Hebraica define quem pertença ao povo de Israel com base em uma linhagem patriarcal e tribal, descendente de Abraão, Isaque e Jacó. Essa identidade era religiosa e étnica ao mesmo tempo, mas sempre localizada numa estrutura genealógica.

O Estado de Israel atual, porém, baseia sua Lei do Retorno (de 1950) em um critério híbrido: qualquer pessoa com um avô judeu pode imigrar e obter cidadania, mesmo que não pratique o judaísmo. Isso criou paradoxos, como a entrada de milhares de judeus seculares ou mesmo ateus, enquanto palestinos que foram expulsos de suas terras ancestrais continuam barrados pelo mesmo Estado.

Esse critério evidencia que o moderno conceito de “judeu” está mais próximo de uma identidade nacionalista moderna do que de uma linhagem tribal bíblica. A substituição de uma espiritualidade orgânica por critérios burocráticos revela mais uma ruptura do que uma continuidade.

 9. As implicações políticas dessa falsa equivalência

A perpetuação da ideia de que o moderno Estado de Israel é a continuação da Israel bíblica tem implicações políticas graves e perigosas. Ela tem sido usada como base para justificar a colonização de territórios ocupados, a opressão do povo palestino, e a exclusão de qualquer narrativa alternativa ao sionismo. Políticos e líderes religiosos invocam profecias bíblicas para sancionar a construção de assentamentos ilegais e a destruição de casas palestinas, como se estivessem cumprindo um plano divino.

Entretanto, como demonstrado, a Israel moderna é um produto da modernidade política e não da providência profética. Reivindicar autoridade moral com base em textos religiosos milenares, descontextualizados e reinterpretados por interesses estatais, é não apenas desonesto — é perigoso.

A real Israel bíblica, se existiu historicamente como nação unificada e teocrática (o que também é debatido), cessou de existir há mais de dois milênios, e seu legado é espiritual, não político. A tentativa de transformá-lo em justificativa para um projeto de engenharia geopolítica e etnocêntrica compromete a justiça, a paz e a coexistência que poderiam florescer naquela terra sagrada para três grandes tradições religiosas.

Conclusão

Confundir a moderna Israel com a Israel bíblica é um erro histórico, político, antropológico e espiritual. Os dados arqueológicos demonstram descontinuidades profundas; a identidade judaica atual é múltipla, globalizada e muitas vezes construída; o sionismo é uma invenção recente, ocidental e laica; e o Estado de Israel opera com lógicas modernas de poder, fronteira, exército e direito internacional — absolutamente distintas da teocracia tribal que existiu na Antiguidade.

Ao invés de mitificar essa continuidade, o mundo precisa reconhecê-la como uma construção artificial com implicações graves para a vida de milhões de pessoas. Só com a superação dessas narrativas míticas e com o reconhecimento das múltiplas realidades históricas será possível imaginar uma paz justa entre os povos da Palestina histórica.


 Bibliografia (selecionada)

Shlomo Sand. A Invenção do Povo Judeu. São Paulo: Benvirá, 2011.
  — Obra fundamental que questiona a narrativa de continuidade étnica entre os hebreus bíblicos e os judeus modernos.

Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman. The Bible Unearthed: Archaeology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of its Sacred Texts. New York: Free Press, 2001.
  — Base arqueológica crítica que mostra a falta de evidências para muitas narrativas bíblicas.

Eric Hobsbawm e Terence Ranger (orgs.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
  — Análise sobre como identidades nacionais modernas são construídas com mitos de origem.

Ariel Toaff. Pasque di sangue: Ebrei d’Europa e omicidi rituali. Bologna: Il Mulino, 2007.
  — Discussões históricas sobre a diversidade dos judeus europeus e sua relação com a construção da identidade israelense.

Gilad Atzmon. The Wandering Who? A Study of Jewish Identity Politics. Winchester: Zero Books, 2011.
  — Estudo crítico da identidade judaica moderna e do papel do sionismo.

Eran Elhaik. "The Missing Link of Jewish European Ancestry: Contrasting the Rhineland and the Khazarian Hypotheses". Genome Biology and Evolution, 2012.
  — Estudo genético que questiona a narrativa de continuidade étnica direta entre judeus modernos e hebreus antigos.

Bíblia Hebraica (Tanakh) – Versões acadêmicas como a Jewish Study Bible (Oxford University Press) ajudam a contextualizar textos antigos à luz da crítica textual e histórica.

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terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

O Silêncio que Grita na Noite


Por Guilherme Bitencourt 


A madrugada se estende diante de mim como um abismo profundo e insondável, onde cada segundo se arrasta como se o tempo, cansado de avançar, tivesse se rendido ao vazio. Deitado na penumbra do meu quarto, sou invadido por um silêncio opressor — não o silêncio sereno das horas de descanso, mas o silêncio de uma alma perdida, enredada em suas próprias sombras. O ventilador, monótono e incansável, gira em círculos preguiçosos, como uma ampulheta que marca os instantes que escapam de minhas mãos. Seu vento frio, longe de aliviar, traz uma sensação de distanciamento, como se me separasse do mundo que pulsa lá fora. Cada rajada parece me empurrar ainda mais para dentro do abismo da minha mente, onde as angústias se entrelaçam e se alimentam umas das outras.

O livro que repousa ao meu lado, aberto e inerte, já não tem mais a força de antes. As palavras, antes convidativas, agora se tornam pedaços dispersos de algo que já não importa. As frases se perdem em minha mente, como se o próprio sentido se esvaísse por entre os dedos. A leitura, que era um refúgio, transforma-se em uma armadilha, um reflexo da minha incapacidade de escapar de mim mesmo. O vazio da noite se torna um espelho que reflete minha própria inquietação.

Lá fora, no vasto silêncio da noite de Franco da Rocha, o bairro Jardim Progresso, banhado pela luz amarelada da Avenida Washington Luís, se revela como um palco sombrio. A vida marginal da rua segue seu curso descompassado, como se a cidade, indiferente, não pudesse mais perceber seus habitantes. Passos lentos e arrastados quebram a quietude da madrugada, reverberando nas calçadas como se estivessem tentando encontrar algo que se perdeu no tempo. Vozes, altas e baixas, entrecortam o ar, murmurando palavras que se dissolvem na escuridão. O som de uma discussão cresce, toma forma, mas logo se perde, dissolvendo-se na vastidão da noite, como se nunca tivesse existido. E eu me pergunto, em um suspiro: sou eu que estou perdido, ou são eles, cujos passos arrastados trilham as mesmas ruas desertas, sem destino, sem rumo?

O ventilador continua seu giro monótono, o som repetitivo preenchendo o espaço, quase hipnótico, como uma melodia que embala o vazio. Meus pensamentos, antes frenéticos e esmagadores, começam a se dissipar, desfazendo-se na neblina do cansaço e da apatia. O tempo parece parar, mas não há alívio no abandono. Há um peso no ar, uma tensão latente, como se a noite, em seu silêncio, estivesse aguardando o momento certo para se despir de sua máscara. A expectativa se torna palpável, e a inquietação, em sua agonia, começa a se transformar.

De repente, em meio a tudo isso, a esperança surge, tênue como um raio de sol que se insinua pela fresta da janela. Não é uma esperança grandiosa, mas uma esperança silenciosa, que surge quase sem aviso. O amanhecer, ainda distante, começa a se insinuar no horizonte da minha alma. Uma promessa, talvez, ou apenas o alívio de quem já não sabe mais como lutar contra o peso da noite. Algo dentro de mim se suaviza, como se a própria escuridão estivesse se desfazendo, permitindo que eu encontrasse um respiro. O ventilador, antes incômodo, agora se torna uma presença tranquila, como uma canção de ninar que me embala para um sono que, enfim, chega.

A rua, lá fora, parece silenciar. Os passos desaparecem, as vozes se aquietam. E, então, como se o mundo se rendesse ao momento, o primeiro pássaro canta, sua melodia quebrando o silêncio da madrugada. E, por um instante fugaz, sinto uma leveza que nunca imaginei sentir. Amanhã, quem sabe, será diferente. Amanhã, quem sabe, será o começo de algo novo, de algo melhor.