quarta-feira, 9 de julho de 2025

A MAIOR FÉ DE DINHEIRO DO BRASIL: COMO A IGREJA UNIVERSAL MOVIMENTOU R$ 42 BILHÕES SEM FISCALIZAÇÃO EFETIVA



Por Guilherme Bitencourt

Entre os anos de 2011 e 2015, a Igreja Universal do Reino de Deus — comandada por Edir Macedo, fundador também da Rede Record — movimentou R$ 33,3 bilhões apenas em doações bancárias. Corrigido pela inflação, esse valor sobe para R$ 42 bilhões. São dados concretos, com fonte oficial: um relatório técnico do Laboratório de Tecnologia contra Lavagem de Dinheiro (LAB-LD), órgão do Ministério Público do Estado de São Paulo. Esse mesmo relatório foi produzido no âmbito de um inquérito instaurado após a quebra de sigilo bancário da Universal, autorizada judicialmente pela 4ª Vara Criminal de Ribeirão Preto, e por anos manteve-se fora do radar público.

O documento foi revelado em reportagem investigativa do portal The Intercept Brasil, e apresenta algo assombroso: os R$ 33 bilhões registrados não incluem as doações em dinheiro vivo feitas nos templos, prática comum entre fiéis da igreja — em sua maioria pessoas de baixa renda, sem conta bancária, e incentivadas a doar o que podem, e muitas vezes o que não podem. Esse valor em espécie é, nas palavras do empresário Michel Pierre de Souza Cintra, ex-operador da igreja, “infinitamente maior”. E é justamente essa massa de recursos — não rastreável por vias bancárias — que permanece fora de qualquer controle público ou estatal, apesar da dimensão quase estatal da instituição religiosa.

Cintra, condenado a mais de 70 anos de prisão por crimes como lavagem de dinheiro, estelionato e associação criminosa, afirma ter doado mais de R$ 20 milhões à igreja, em dinheiro e bens. Em entrevista da prisão, revelou um esquema que, segundo ele, operava sob ordens diretas da Universal. Afirmações como essa foram formalizadas judicialmente: Cintra entrou com uma ação na Justiça exigindo indenização de R$ 22 milhões da Igreja Universal, alegando ter sido manipulado para servir como instrumento do que ele chama de “império da fé”.

DÉBITOS E CRÉDITOS MILIONÁRIOS NUMA LÓGICA INVERTIDA

O relatório do Ministério Público mostra que a Igreja Universal não apenas recebeu R$ 33,3 bilhões, mas gastou praticamente a mesma quantia no mesmo período — R$ 33,379 bilhões. Ficando com um superávit ínfimo para uma entidade que movimenta cifras tão altas: R$ 80 milhões em caixa. Segundo Cintra, "é a única organização do mundo que arrecada bilhões e termina com uma sobra quase simbólica". O destino exato desses gastos, contudo, permanece obscuro.

A principal instituição envolvida nas transferências é o Banco Renner, hoje chamado Banco Digimais, também pertencente a Edir Macedo. Foram R$ 16,8 milhões enviados ao banco apenas entre 2011 e 2015. E, como se isso não bastasse, o relatório identificou transferências vindas da própria TV Record do Rio de Janeiro (R$ 1,36 milhão), da Rádio Record de Campos (R$ 27 mil), e de pessoas ligadas diretamente à família Macedo, como Eris Crivella (irmã de Macedo e mãe do ex-prefeito do Rio, Marcelo Crivella), e também de empresas controladas por parentes, como a Crivella Produções.

Mais ainda: entre os doadores está Douglas Tavolaro, ex-vice-presidente de jornalismo da Record TV, que doou R$ 13,8 mil. Ou seja, há indícios de que parte do ecossistema midiático do grupo também tenha contribuído financeiramente com a instituição religiosa — criando uma rede de autofinanciamento que levanta muitas perguntas, ainda não respondidas.

O IMPÉRIO DA PROSPERIDADE

A Universal é, hoje, uma máquina institucional com mais de 100 empresas registradas, segundo levantamento da reportagem: há emissoras de rádio e TV, jornais, editoras, hospitais, planos de saúde, empresa de segurança, bebidas, bancos, e serviços de logística. Tudo operando sob o guarda-chuva do discurso religioso centrado na Teologia da Prosperidade — corrente neopentecostal que prega que fé e dinheiro estão intimamente ligados. Nesse modelo, doar é investir: quanto mais você oferta a Deus (leia-se à Igreja), mais bênçãos financeiras você receberá de volta. É a espiritualização da lógica de mercado.

É uma doutrina eficaz: a TV Record recebeu entre R$ 500 milhões e R$ 575 milhões por ano entre 2013 e 2016 da própria igreja, segundo dados divulgados pela emissora. Esse dinheiro paga o horário da madrugada na programação, em que cultos são transmitidos e a mensagem da prosperidade é reiterada diariamente a milhões de brasileiros — muitos deles vivendo na informalidade, no desemprego ou em contextos de extrema vulnerabilidade social. Enquanto isso, a igreja garante o controle de meios de comunicação e a fidelização de um público cativo.

A fortuna de Edir Macedo, segundo a Forbes em 2015, foi estimada em US$ 1,1 bilhão, o que o colocava como o pastor mais rico do Brasil — um país em que o salário mínimo, hoje, não passa de R$ 1.412. Macedo também declarou, na mesma época, que a Record TV valeria cerca de US$ 2 bilhões.

INVESTIGAÇÕES ESTANCADAS, CRIMES PRESCRITOS

A pergunta que não quer calar: como uma movimentação financeira tão gigantesca não resulta em condenações definitivas ou em fiscalização mais rigorosa?

O Ministério Público chegou a abrir investigações sobre a Igreja Universal. Em 2011, a Procuradoria da República em São Paulo denunciou Macedo e outros líderes por lavagem de dinheiro, evasão de divisas, estelionato e falsidade ideológica. A ação tramitou até 2019, mas todos os crimes prescreveram. Dois anos depois, uma nova investigação conduzida pelo GAECO também foi arquivada. Michel Cintra se recusou a depor novamente, segundo o promotor Aroldo Costa Filho, e com isso o caso esfriou.

Mesmo com provas documentais da movimentação bilionária, não houve responsabilização penal da instituição religiosa. Macedo jamais foi condenado. A igreja, por sua vez, se defende afirmando que essas investigações são parte de uma perseguição religiosa.

UM ESTADO PARALELO?

Não estamos falando de fé. Tampouco de liberdade religiosa, que é um direito garantido. Estamos falando de um poder paralelo econômico e midiático, que movimenta cifras maiores que muitos estados brasileiros e que opera com imunidade tributária, isenção fiscal e quase nenhuma prestação de contas à sociedade.

Mais do que isso: uma organização que arrecada R$ 42 bilhões em quatro anos — sem contar o dinheiro vivo —, injeta centenas de milhões em sua própria rede de comunicação e segue intocável diante das instituições de controle. Não é apenas uma igreja. É um império econômico, político, midiático e social — construído com a fé de milhões de brasileiros pobres e mantido por uma estrutura que mistura religião, mídia e mercado financeiro.

É preciso dizer com clareza: o que está em jogo não é apenas a arrecadação da fé, mas a fragilidade do próprio Estado diante de organizações que se apresentam como religiosas, mas operam como conglomerados transnacionais. Enquanto isso, o caixa da igreja segue girando, o dinheiro entra e sai com velocidade surpreendente — e os templos continuam a se multiplicar, assim como os dízimos, as ofertas, as promessas e os bilhões.


Fontes:

  • Relatório do Laboratório de Tecnologia contra Lavagem de Dinheiro (LAB-LD) – CAEx – Ministério Público de São Paulo

  • 4ª Vara Criminal de Ribeirão Preto – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

  • The Intercept Brasil, reportagem investigativa de 2023

  • Ministério Público Federal, denúncia de 2011

  • Revista Forbes, edição de 2015

  • TV Record, balanços públicos 2013–2016


Esse não é um alerta contra a fé. Mas é um chamado para a sociedade: em tempos de crise fiscal, desigualdade social e cortes em políticas públicas, é inadmissível que uma organização com esse poder financeiro continue sem transparência, sem fiscalização e, sobretudo, sem responsabilização.